16.9.11

MULHER SOMBRA PROCURA LOURDES CASTRO

MULHER SOMBRA I | Shadow woman | pedra mármore e feltro |
marble stone and felt| 60x125x185cm |

 
Era uma vez uma Mulher que vivia numa ilha. O seu mundo não ultrapassava o pequeno bosque que lhe pertencia e aos oitenta anos continuava a sorrir, mesmo quando chorava. Os olhos azuis iluminavam-lhe todo o rosto, penetráveis como água, pontos coloridos e luminosos. Na calma e bem-estar da casa, a solidão acompanhava-a como a sua sombra. A ausência do seu homem era tão física como a sua presença. Não havia filhos. Os álbuns de família eram a recolha de uma vida de sombras. Saberão alguns que a mulher é Lourdes Castro[1] e o homem Manuel Zimbro[2].
A outra Mulher, de quem fala esta história, é atraída pelo mesmo isolamento. Sabe-o fora dos limites da sua povoada existência. Secaria pela raiz se não pudesse dar o beijo aos filhos adormecidos no conforto que lhes proporcionou, aconchega-los, zelar pela tranquilidade da noite. Alimenta-os, lava-os, veste-os, educa-os e pouco lhe sobra. Que importa?
Está nos antípodas da coragem, da independência, dos seres solitários que admira. Pessoas detentoras do seu tempo e da sua vontade, duas coisas que a Mulher tem em porções suficientes para avançar muito lentamente. Não tem onde chegar e a sensibilidade e a intuição, continuarão a leva-la para o desconhecido. Tem sempre medo, mas vai. Será isto ser artista?
Entre cada refeição, arrumar os brinquedos espalhados, dobrar a roupa seca, as salas cheias de crianças a quem tenta ensinar como olhar para além do que os seus olhos vêem. Entre cada beijo, cada zanga, cada dor no peito quando o céu se fecha e escurece, o vento sopra, a chuva cai, cria-se. O pouco que se torna expressão obedece à mesma lei, seguir o fluxo, não procurar o fim, pôr a verdade versus perfeição ao lado do fingimento, da maldade, da mentira, da representação. Procurar tantos pontos de vista quantos o cérebro, mãos, habilidade, o permitam e uni-los. Aqui a têm e perdoem-lhe se puderem.


“Querida Lourdes Castro,
Terás escolhido assim ou foi como aconteceu? Criaste a tua ilha na efemeridade das tuas sombras? O teu homem morreu, a tua arte parou. O que tens para além da natureza? Como adorava falar-te e ouvir-te Lourdes Castro, apesar do pouco que temos para partilhar, para além da sombra.  
Vivi metade do teu tempo e tudo o que sou me é permitido na sociedade que habito. Não precisei lutar pela minha condição. Outras o fizeram por mim. Aceito e não sobreviveria sem a estrutura família, filhos, casal, casa, roupa mudada, refeições, festas de anos, um equilíbrio que reconheço instável. Este é o esqueleto onde assentam as formas, as forças que me permitem o movimento. Mas não me conformo com o ver passar porque para estar plenamente há que passar também, contornar cada corpo, habitar cada espaço. Não posso conformar-me com o que sou, porque sou tão pouco.
Sorvo tudo à minha volta e se pudesse estar contigo, por momentos que fosse, sorver-te-ia também. Depois, é a selecção natural que deixa passar apenas o que está em harmonia com o que já me habituei a ser. Será absorvido e ocupará o seu lugar, até ser desenho, palavra, forma, som, ou tudo junto.
Acho que nunca nos encontraremos Lourdes Castro. Farei apenas parte do que não conheces. São só duas existências que não se cruzam, como quase o mundo inteiro. Conforto-me por estares, embora de forma ausente, no meu mundo, como diz Amadeu, quando depois de uma saída nos aproximamos da porta de casa.”

Perdida a projecção do filme “Pelas Sombras”[3] em Lisboa, Mulher e Homem partiram rumo ao Porto, apesar de contarem cada cêntimo para a viagem, fazerem a pé o percurso entre o Metro e Serralves, levar farnel para o caminho e não terem podido comprar o catálogo.
Foram 300km para ver a exposição e o filme, ir e voltar no mesmo dia, não levar os filhos, uma espécie de fuga, mas também uma necessidade, como para encontrar alguém que nunca mais voltariam a ver. A Mulher conhece agora um pouco melhor o trabalho de Lourdes Castro, mas sobre ela não sabe nada. E o que há para saberes, estranha? Poderá dizer. Deixar-me tocar pelo seu despojamento e sensibilidade, para fazer crescer a minha, como as vontades que “Blimunda”[4] recolheu para fazer voar a “Passarola”[5].


[1] Artista portuguesa, nascida no Funchal, Ilha da Madeira em 1930.
[2] Artista português, nascido em Lisboa em 1944.
[3] Documentário “Pelas Sombras” realizado por Catarina Mourão, 2010
[4] Personagem do livro “O memorial do convento” de José Saramago
[5] idem

Sem comentários:

Enviar um comentário